Blog Clara Nunes: Jornal O Tempo- O canto da guerreira ressoa novamente

25 março 2013

Jornal O Tempo- O canto da guerreira ressoa novamente


O canto da Guerreira ressoa novamente
Publicado no Jornal OTEMPO em 24/03/2013
RENATO VIEIRA

FOTO: WILTON MONTENEGRO/ DIVULGAÇÃO
Figura. Cantora também ficou na memória cultural do Brasil por conta de suas roupas que remetem à religiosidade e à cultura afro-brasileira
Se 2012 foi o ano em que o Brasil lembrou de Elis Regina por conta de suas três décadas de morte, o mesmo já está acontecendo em relação a Clara Nunes. A cantora, que faleceu em 2 de abril de 1983, após passar 28 dias em coma decorrente de um choque anafilático, quando fazia uma cirurgia de varizes, será homenageada através de tributos de outras intérpretes, relançamento de sua discografia e documentário (veja matéria ao lado). É uma boa oportunidade para lembrar o legado da Guerreira, responsável pelo renascimento do samba nos anos 1970 e consequentemente por seu sucesso comercial.

Clara Francisca nasceu em 1942 em Cedro (distrito de Paraopeba, hoje Caetanópolis, a cerca de 100 quilômetros de Belo Horizonte) e adotou o Nunes da mãe nos anos 1950, quando cantava em bailes e boates da capital. Entre 1966 e 1969 gravou três álbuns que transitavam entre o samba-canção e o bolero. A partir de 1971, com a ajuda do produtor Adelzon Alves, é que ela se tornou expoente do samba de raiz, sem deixar de se debruçar sobre outras sonoridades brasileiras, como o forró e o maracatu.

"A Clara foi uma pioneira em muitos sentidos. O principal deles foi dar visibilidade a um estilo e mostrar seu valor para o grande público. Era uma época em que havia grande resistência ao samba e ela conseguiu passar por essa barreira", considera Vagner Fernandes, biógrafo da cantora. Ele lembra que a Guerreira, como era conhecida, foi a primeira mulher a vender 400 mil cópias de um álbum - "Alvorecer", lançado em 1974 -, no Brasil; abraçou a cultura afro-brasileira sem medo de sofrer preconceitos e, por tabela, reconfigurou o mercado fonográfico, com Beth Carvalho e Alcione deixando, respectivamente, de cantar canções de protesto e jazz para aderir ao samba, que se tornou lucrativo para as gravadoras.

Esses quesitos são reconhecidos por Aline Calixto, que lançou na última quinta-feira nas redes sociais
uma gravação de "Conto de Areia", faixa de maior sucesso de "Alvorecer". "Quando a gente lembra de mulheres no samba, a primeira pessoa que vem à cabeça é Clara Nunes, porque ela ficou sendo a maior referência, com ela é que se abriu as portas para as outras e serve de inspiração até hoje".

Para ela, Clara era uma cantora diferenciada. "Assistindo aos clipes dá pra perceber que ela sentia o que estava cantando, é como se ela vivesse aquilo. Pra nós, da nova geração do samba, acaba sendo um aprendizado", afirma.

O diferencial também estava no repertório. Clara deu voz a compositores que ainda não haviam encontrado alguém que pudesse reverberar seu trabalho. "Na mesma época em que Adelzon produzia Clara, ele tinha um programa de rádio no qual tocava novos sambistas. Esse repertório quase sempre chegava para ele em primeira mão e o que era bom ele mostrava pra Clara, que tinha um carinho especial pelos compositores de morro", explica Fernandes. Candeia, Dona Ivone Lara e João Nogueira são autores que despontaram a partir do momento em que a cantora lhes deu espaço em seus álbuns.

Clara também permanece na memória coletiva pelo seu vestuário. A cantora usava colares de contas, pulseiras e símbolos da umbanda, além das roupas de baiana, que se tornaram sua marca registrada. "Ela tinha consigo uma religiosidade que estava em todos os aspectos do seu trabalho. E, à época, isso não era muito bem-visto. Mas o público ficou encantado com aquelas roupas, as pessoas sentiram uma verdade naquilo que a Clara apresentava". O biógrafo lembra que, talvez por conta da indumentária, ela foi a artista que mais gravou clipes para o "Fantástico", da TV Globo, em um momento no qual o programa era um dos principais veículos musicais na emissora. Alguns desses vídeos foram compilados em um DVD lançado em 2009.

Shows. Calixto e a paulista Fabiana Cozza, além da baiana Mariene de Castro - que lançou há poucas semanas o CD e DVD "Ser de Luz - Uma Homenagem a Clara Nunes" -, têm apresentado o repertório de Clara em shows pelo país desde 2012, quando Clara completaria 70 anos. Ambas contam que a iniciativa partiu da simples vontade de fazer uma homenagem. "O samba deve muito a ela. Por isso ela merece ser reconhecida", salienta Calixto, sem medo de comparações, assim como Cozza. "O bacana é que o espetáculo não busca imitá-la ou utilizar-se de signos ou dos adereços que ela usava. Não se trata de levar a Clara para o palco, mas mostrar suas músicas e sua brasilidade". Ambas escolheram equilibrar grandes sucessos com músicas pouco lembradas.

Fernandes, que participou da concepção inicial do trabalho de Mariene, diz ver as homenagens de Calixto, Cozza e Mariene com bons olhos e que elas servem para levar o trabalho de Clara a um novo público. "Esses tributos são a maior prova de que ela conseguiu deixar um trabalho sólido que continua importante dentro da nossa música e que tem gente disposta a levar isso à frente", salienta o biógrafo, acrescentando que as cantoras devem fazer seus tributos sob o olhar particular de cada uma.

"Clara é uma artista atemporal, com um repertório atemporal e sua figura também é atemporal. Por isso esses tributos fazem tanto sentido neste momento. Mas a obra da Clara está viva, não dá pra soar como uma simples cópia. Se você escutar uma música dela no rádio, pode até achar que foi feita agora, pela qualidade de gravação e do repertório. É algo que permanecerá para sempre".





REEDIÇÕES
Álbuns e livro de volta às lojas
O biógrafo Vagner Fernandes é responsável pelo novo box que terá os 16 álbuns gravados por Clara Nunes. Os trabalhos já haviam saído em CD, mas voltam às lojas com nova masterização e correção de falhas das edições anteriores, como capas trocadas e faixas com baixa qualidade de som.

O box deve sair nos próximos meses e Fernandes está selecionando faixas que Clara gravou em compactos e projetos especiais para complementar os álbuns originais. "Estamos acertando os detalhes finais. Acredito que seja um lançamento que faça jus à obra de Clara", afirma.

O lançamento vai permitir ao ouvinte um passeio pela constante evolução artística de Clara. Em seu primeiro álbum, "A Voz Adorável de Clara Nunes", por imposição da gravadora, a cantora interpreta boleros, que aparecem em maior ou menor medida nos dois discos seguintes. O grande salto acontece em 1971, quando ela passa a ser produzida por Adelzon Alves e grava "o disco da virada", segundo Fernandes.

"É a partir daí que a gente reconhece a Clara de verdade, porque antes ela era restringida pela gravadora", salienta o biógrafo, afirmando que Clara mantém o nível de sua discografia nos álbuns seguintes e atinge seu auge a partir de 1975, após o êxito de "Alvorecer" (1974), quando passa a ser produzida pelo marido e compositor Paulo César Pinheiro.

Fernandes também localizou gravações inéditas, como shows do projeto Sabor Bem Brasil, no qual Clara dividiu o palco com João Bosco e Altamiro Carrilho, dentre outros nomes e uma apresentação com João Nogueira na Costa do Marfim. Segundo ele, é possível que os registros saiam em CD em breve.

Também voltará às lojas o livro de Fernandes, "Clara Nunes: Guerreira da Utopia". Lançado pela Ediouro em 2007,a publicação já não é encontrada com facilidade. O relançamento deve acontecer por uma nova editora e está em fase de negociação. (RV)
MEMORIAL
Objetos e roupas são expostos em Caetanópolis
Inaugurado em agosto do ano passado, o Memorial Clara Nunes, em Caetanópolis, abriga cerca de 6.000 itens da cantora, entre objetos pessoais, roupas, discos de ouro e documentos. A iniciativa partiu da irmã da cantora, Maria Gonçalves, a Dindinha, que para isso criou o Instituto Clara Nunes.

Localizado na rua Fernando Lima, próximo ao centro da cidade, o memorial só abre nos fins de semana e feriados. O visitante paga R$ 5, com meia-entrada para menores de idade e estudantes. Crianças entram gratuitamente. No local há uma sala de exposição e uma sala de projeção na qual são exibidos clipes de Clara. Marlon de Souza, historiador da Universidade de São João del Rei, que fez o trabalho de catalogação do acervo e é o curador do espaço, diz que pretende montar uma programação especial devido aos 30 anos de morte de cantora. "Não sabemos ainda como vai ser, até porque o marido da Dindinha acabou de falecer e gostaria muito que ela participasse da organização. Mas acho que devemos fazer algo para que a data não passe em branco", explica.

Um projeto que pede a manutenção e ampliação do memorial foi inscrito na Lei Rouanet. Segundo o curador, o incentivo possibilitaria também a abertura diária do espaço e a organização de grandes eventos culturais na cidade. Por enquanto, os custos são cobertos pela venda de CDs, discos de vinil e cartões-postais. (RV)

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