"É impressionante como ela (Clara) não esmorece..."
DVD recupera especiais da cantora Clara Nunes para o 'Fantástico'
Luiz Felipe Reis , Jornal do Brasil
RIO - Há 25 anos, Clara Nunes deixava órfã uma legião de fãs. Daqueles acostumados a pregar os olhos hipnotizados na tela da TV aos domingos, quando sua imagem rompia o Fantástico.
Esperavam, ansiosos, o momento de apreciar a imponência de sua voz e o colorido de seus trajes e adornos. Se a música da mineira que abraçou o samba – e se tornou, ao lado de Beth Carvalho, baluarte do gênero mais popular do país – permanece intacta, a imagem de musa-guerreira andava meio apagada.
Tão forte quanto suas canções, seus vídeos agora são redescobertos com o lançamento do DVD Clara Nunes – Os musicais do Fantástico das décadas de 70/80, o primeiro registro audiovisual de toda a sua carreira – nas lojas a partir desta semana.
Nele são reunidas 21 gravações especiais realizadas para o programa de maior audiência da TV Globo, incluindo canções de sucesso como Conto de areia (Romildo e Toninho), O mar serenou (Candeia), Guerreira (Paulo César Pinheiro e João Nogueira), Na linha do mar (Paulinho da Viola) e Nação (Aldir Blanc, Paulo Emílio e João Bosco).
Reza a lenda que, quando a emissora precisava de bons índices de audiência, era a Clara a quem costumavam recorrer. Sobretudo na década de 70, período em que as adversidades dos anos de chumbo da ditadura militar impeliam e desafiavam emissoras a encontrarem novos rumos para a programação.
Clara encabeçava o ranking de artistas na predileção dos diretores da grande mídia. Era convocada para amenizar a noite e aliviar a dor em horário nobre. Assumia, assim, o posto de estrela de TV.
– Foi a recordista de gravações para o Fantástico. Além do seu enorme talento, era uma mulher linda, de personalidade teatral e acessível. Era humilde e topava qualquer viagem, por isso todos os diretores ficavam loucos para gravar com ela – recorda José Itamar de Freitas, ex-diretor geral do Fantástico, que passou 14 anos à frente dos quadros de reportagem, humor e shows.
– Numa época em que ficávamos a mercê dos censores, ela levantava o astral da população. Linda e sexy, tornou-se cada vez mais querida pelo grande público.
Inicialmente previsto para ser lançado em abril, mês de aniversário da sua morte, o DVD – que vem acompanhado de textos do biógrafo da cantora, o jornalista Vagner Fernandes, editor do JB Online – conta a história de Clara de 1974 a 1983, cobrindo nove de seus 16 álbuns lançados.
Por tabela, documenta também parte dos caminhos traçados pelo vídeoclipe no país. A cada canção, evolui a artista, a captação das imagens, a mudança das cores, trajes e concepções estéticas.
Uma viagem no tempo. Com áudio remasterizado e recuperado de algumas falhas, o DVD se pretende um apanhado histórico do progresso da meteórica carreira da artista, que se recusa a desaparecer do imaginário de seus fidelíssimos fãs.
– É impressionante como ela não esmorece – constata o coordenador geral do projeto, Luiz Garcia, que estima vendas em torno de 30 mil cópias.
– Seu mito ganha força e brilho, pois conta com um fã clube ativo até hoje. Valeu penar durante um ano inteiro em busca de autorizações e recuperar artesanalmente os arquivos de vídeo.
Nascida em 1942, numa família de classe operária na cidade mineira de Cedro (atual Caetanópolis), Clara Francisca Gonçalves se tornou a jovem Clara Nunes após chegar ao Rio, orfã de pai e mãe. Tentou diversos caminhos profissionais, de cantora de boleros a investidas jovem-guardistas. Atuou como crooner em Belo Horizonte. Mas foi com a ajuda do radialista Adelzon Alves e do compositor Ataulfo Alves que vislumbrou uma brecha: desde Carmem Miranda não havia outra cantora que evocasse uma africanidade tão marcante. Surge a sambista ligada ao candomblé e a diversas outras crenças, que se consagra como respeitada intérprete da MPB. Dona de voz, figurinos e coreografias marcantes que sedimentam a estética afro-brasileira na televisão.
– Aos olhos de hoje, trazer toda a mística do espiritismo, da umbanda e do candomblé como fator de audiência é impensável, por conta da força de outras crenças. Quando a Globo queria elevar o Ibope trazia Clara à frente da tela – confirma Garcia.
Sincretismo religioso em forma de artista, a filha de Angola, Keto e Nagô, que não era de brincadeira e nem temia quebrantos por ser guerreira, teve sua trajetória interrompida prematuramente aos 40 anos, em 1983, após um choque anafilático ocorrido durante uma cirurgia de varizes. Fatalidade que impediu a evolução da parceria musical entre a cantora e o compositor João Bosco, artista mineiros e que tinham muitas histórias em comum: – Nos conhecemos e nos tornamos próximos musicalmente no fim da década de 70. Nação foi a primeira e a única de uma série de canções que planejávamos gravar – recorda Bosco.
– O que me entristece demais é que nos descobrimos tarde. Todo início de relação é intenso e a nossa parceria compositor/intérprete foi interrompida brutalmente. Fico feliz em ver que essa música se tornou um dos seus maiores sucessos e serviu como título do seu último trabalho.
Clara alimentava uma ligação forte com as esperanças populares. Estava envolvida com o samba dos morros cariocas e com as crenças dos seus habitantes. Exercia um poder de magia que se alinhava às expectativas da época. Seu poder de comunicação a transformou em mito.
– Observo em jovens intérpretes a influência de Clara. E, entre elas, percebo a dimensão do seu mito, pois as ouço conversando sobre seus discos Até hoje não surgiu alguém que pudesse preencher esta lacuna. O que atrai a curiosidade e gera a vontade de estabelecer contato com a sua linhagem – acredita Bosco.
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