Blog Clara Nunes: Jornal Estado de Minas

13 agosto 2012

Jornal Estado de Minas


Memorial dedicado a Clara Nunes celebra história da artista com mais de 6 mil itens  

Espaço reúne acervo da cantora em Caetanópolis, sua cidade natal a 100 quilômetros de Belo Horizonte

Fotos: Gladyston Rodrigues/EM/D. A Press

A radiola, com direito aos pés palito, característicos dos anos 1960, foi prêmio do concurso A Voz de Ouro ABC, no qual a candidata mineira conquistou o terceiro lugar. Ela é apenas um dos mais de 6 mil itens catalogados por Marlon Silva, curador da exposição retrospectiva da carreira da cantora, em cartaz no Memorial Clara Nunes. “Se não for o maior acervo pessoal, com certeza é um dos maiores de que se tem notícia”, revela o mestre em história pelo Centro de Ensino Superior de Conselheiro Lafayete, que montou o memorial ao lado da professora e também historiadora Sílvia Maria Jardim Brügger.

Debruçada desde 2002 sobre o projeto de pesquisa de pós-doutorado “O canto do Brasil mestiço – Clara Nunes e o popular na cultura brasileira”, a professora da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) começou a identificar, acondicionar e a digitalizar as imagens do acervo da cantora, até então guardado em uma sala da Creche Clara Nunes/Grupo Espírita Paulo de Tarso, mantida em Caetanópolis por dona Mariquita. “Até o momento, já catalogamos mais de 6 mil objetos, fora o que ainda há para ser registrado no acervo dela”, contabiliza Marlon Silva, que, para a inauguração, preocupou-se em mostrar apenas um panorama da carreira consagrada da artista.

Natural do antigo distrito de Cedro, de Paraopeba, que viria a se tornar o município de Caetanópolis, Clara Francisca Gonçalves foi uma das maiores estrelas da MPB entre as décadas de 1960 e 1980, depois de trajetória de muita luta. De operária da Cedro Cachoeira, de Caetanópolis, à Companhia Renascença Industrial, de Belo Horizonte, até a glória no Rio de Janeiro, Clara Nunes enfrentou dificuldades e preconceitos, vencendo tudo com garra e determinação. 

“Ela conseguiu difundir uma obra que perpassa tempos históricos e dialoga com as raízes mais profundas da cultura brasileira”, detecta Paulo Henrique Caetano, pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UFSJ. “Trata-se de uma obra de caráter ao mesmo tempo marcadamente local e universal”, acrescenta o pró-reitor, admitindo que a cantora é tudo que uma região precisa para se reconhecer e se perceber como protagonista de uma história.

A secretária municipal de Cultura de Caetanópolis, Marilene de Fátima Araújo, vê a inauguração do Memorial Clara Nunes como o segundo acontecimento mais importante da cidade, de 11 mil habitantes. “É a segunda emancipação de Caetanópolis, que se tornou município há 58 anos”, comemora ela, de olho no desenvolvimento econômico que o memorial da cantora poderá atrair por meio do turismo cultural. 

Festival
Além da recém-inaugurada instituição, que integra o Instituto Clara Nunes, comandado por dona Mariquita, o município abriga a Casa de Cultura Clara Nunes e o Festival Clara Nunes, que está sendo realizado até o dia 19, atraindo a atenção de gente como a carioca Eliane Lorenzo, que preside o Fã-Clube Oficial Clara Nunes (www.faclubeoficialclaranunes.blogspot.com). “Sonhamos com o memorial desde a partida de Clara”, diz Eliane, que vê na criação do espaço a oportunidade para eternizar a obra da cantora. 

Acompanhada de cerca de 20 admiradores da artista, a presidente do fã-clube chegou à cidade mineira no fim de semana para comemorar a realização do sonho da própria cantora e de sua irmã Mariquita, além da imensidão de fãs espalhados pelo país. “Ao mesmo tempo que me sinto realizada pelo fim de uma espera de 29 anos, estou insegura. Afinal, precisamos dar continuidade à obra de Clara”, diz dona Mariquita, preocupada com o avanço da própria idade. 

Além da amiga Sílvia Sales da Silveira, que guardou parte do acervo da cantora em sua fazenda por um tempo, a irmã da cantora se diz agradecida à colaboração da UFSJ e do Centro de Ensino Superior de Conselheiro Lafayete na montagem do Memorial Clara Nunes. O acervo, que exibe preciosidades da cantora, foi doado pelo marido de Clara Nunes, o compositor Paulo César Pinheiro, que, em 1984, encaminhou-o a dona Mariquita, para que fosse reunido em um único espaço.
Música, amizade e religião 
“Clara era a cabeça de tudo desde a infância”. A constatação é da amiga Atahyres Fernandes Magalhães Catarina, a Sinhá, de 74 anos, que viu o talento da cantora sendo formatado. “Trabalhamos juntas no coral e no teatrinho da igreja, para o qual ela criava a coreografia dos bailados”, recorda a amiga de infância, para quem desde então Clara já tinha trejeitos de artista. “Apesar da passagem do tempo, a música de Clara ainda nos atinge”, diz a estudante Mariana Menezes, de 19 anos, que descobriu a artista por intermédio do pai, Romário Vicente Alves Ferreira, atual prefeito de Caetanópolis.
O radialista e produtor mineiro Adelzon Alves, responsável por levar Clara Nunes à marca de 1 milhão de discos vendidos, diz que, além do rico registro vocal, a cantora tinha carisma, boa vontade e humildade diante dos compositores. “Clara tem uma importância muito grande para a música brasileira, porque é de um tempo em que ser cantora era uma profissão amarga para a mulher”, recorda o também radialista Acir Antão.
Amigo pessoal da cantora, de quem celebrou o casamento com o compositor Paulo César Pinheiro, o padre João Emílio Souza, da Paróquia de São Bento, de Belo Horizonte, lembra que ela professava um misto de religiões, frequentando desde missas a ritos de umbanda e candomblé, além de sessões espíritas. “No dia em que pedi a ela dinheiro para a construção de um posto de saúde para atendimentoa pessoas carentes do Bairro Sagrada Família, imediatamente ela se propôs a fazer o show, que arrecadou os 45 milhões de cruzeiros necessários para a obra”, recorda o religioso, orgulhoso da amiga. 
Marcas de uma vida 
A riqueza do acervo de Clara Nunes é tamanha que ele poderá atender as mais diferentes áreas de pesquisa. “Desde a história à música, passando pelo teatro, moda e a arte em seus mais diferentes campos”, constata o curador Marlon Silva. “Além da família, a própria Clara teve o cuidado de guardar tudo: de roupas a fotografias, passando por documentos, troféus, discos e outros itens”.

Já na recepção do memorial, o público poderá adquirir desde LPs (R$ 60 cada) a botons de alumínio com espelho (R$ 15), tapetes artesanais feitos na Creche Clara Nunes (o preço varia de acordo com a medida), selo (R$ 1 o par) da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos em homenagem à artista e o livro O canto mestiço de Clara Nunes (R$ 30), organizado por Sílvia Maria Jardim Brügger.

No salão principal está montada a primeira exposição, com panorama da carreira da cantora, que vai do envolvimento de Clara com a religião (imagens católicas, budistas e umbandistas, além de atabaques como pedestais, guias, velas, livros kardecistas e objetos do candomblé) até a documentação dela (CPF, carteira de identidade, carteira de trabalho e certidões de nascimento e casamento, entre outros).

Peças de roupa (18 ao todo, entre vestidos usados por ela em shows como Brasileiro, profissão esperança, quimonos e fantasias e faixas), discos de ouro (sete) e acessórios, como as famosas tiaras de conchas também compõem o acervo, repleto de fotografias de Clara Nunes ao lado de artistas como Clementina de Jesus, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa e Marisa Gata Mansa. 

Do nascimento (12/8/1942) à morte precoce (2/4/1983), em razão de problemas decorrentes de uma cirurgia de varizes, o curador apresenta um amplo painel de vida e obra da cantora, com a devida cronologia. Uma sala de projeção de audiovisuais, reserva técnica, administração e banheiros completam o memorial, cujo imóvel foi doado ao município pelo sobrinho da cantora, Sued Gonçalves da Silva. A casa onde a artista nasceu é objeto de campanha para se tornar espaço cultural.
Relembre alguns dos álbuns marcantes de Clara Nunes: 
Brasileiro: profissão esperança (1974)
Trilha do espetáculo de Paulo Pontes, em que a cantora dividiu o palco com o ator Paulo Gracindo. O repertório é basicamente de samba-canção. Entre os temas que fazem parte do disco estão composições de Dolores Duran, Tom Jobim, Fernando Lobo e Antônio Maria. 

Alvorecer (1974)
Depois de alguns álbuns com estilo indefinido, em 1974 a cantora surpreende e vende 300 mil cópias de seu LP, graças ao sucesso do samba Conto de areia (Romildo/Toninho). Recorde para a época, rompeu com o tabu de que cantora não vendia discos e estimulou outras gravadoras a investirem em sambistas, como Alcione e Beth Carvalho. O disco tinha ainda Candeia, Dona Ivone Lara, João Nogueira e Caymmi, entre outros.
Canto das três raças (1976)
Já consagrada e com estilo que passaria a adotar até o fim da vida, marcado pela religiosidade africana, Clara Nunes gravou em 76 um de seus maiores sucessos, que dá nome ao disco, de autoria da dupla Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte. O trabalho mostrou ainda que a artista não era apenas sambista, cantando modinha, capoeira e marcha-rancho.
Guerreira (1978)
Tem como abertura a canção que se tornaria marca registrada da cantora, que dá nome ao disco, composição da dupla Paulo César Pinheiro e João Nogueira: “Saravá mineira guerreira que é filha de Ogum com Iansã”. O repertório tem canções que remetem ao clima interiorano, ao samba de morro e aos temas afrobrasileiros. Vendeu mais de 300 mil cópias.

Brasil mestiço (1980)
A faixa de abertura, Morena de Angola, de Chico Buarque, foi feita especialmente para o disco e se tornou um dos maiores sucessos da cantora. O repertório, além de várias canções de Paulo César Pinheiro, tem composições de Candeia, Nelson Cavaquinho, Luiz Bandeira e Elton Medeiros. Fenômeno de vendagem, superou 500 mil cópias.  



MEMORIAL CLARA NUNES
Rua Fernando Lima, 250, Centro, Caetanópolis. Funcionamento: quinta e sexta-feira, das 14h às 18h; sábado e domingo, das 9h às 18h. Durante o Festival Clara Nunes, até o dia 19, o espaço estará funcionando diariamente, das 9h às 18h. Ingressos: R$ 5 (inteira) e R$ 2,50 (meia-entrada).
Informações: (31) 3714-6702. 

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