Rio -  Clara Francisca Gonçalves Nunes é contemporânea da geração que transformou amúsica brasileira. Naquele ano de 1942 em que ela veio ao mundo na pequena Paraopebas, interior de Minas, nasceram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e, dizem – e ele nega -, Jorge Benjor. Apesar do sucesso popular, Clara Nunes nunca foi medida na mesma vertical de seus colegas de música e de idade.
Aos poucos, depois do véu do esquecimento que lhe cobriu vida e obra nos anos posteriores à sua morte, sua importância para a música e a força de seu canto emerge vêm sendo redescobertas. Há poucos dias, em entrevista a este jornal, Gabi Amarantos, cantora-sensação do momento, disse ser Clara Nunes a maior intérprete do Brasil.
Nesta efeméride, Clara é a única que não está aqui para acompanhar reportagens, relançamentos, shows e diversas homenagens a ela e aos septuagenários.
Em 2003, por ocasião dos trinta anos de sua morte, escrevi o artigo intitulado “O segredo de Clara Nunes?, o qual reproduzo abaixo, como homenagem aos setenta anos de idade que ela completaria neste 12 de agosto. Nele se observa o tom de lamentação pelo pouco valor dado à Guerreira. O maior presente que seus fãs podem ganhar é, lendo-o, notar que certas partes envelheceram.
Clara Nunes é considerada uma das maiores cantoras de todos os tempos no Brasil | Foto: Divulgação
Clara Nunes é considerada uma das maiores cantoras de todos os tempos no Brasil | Foto: Divulgação
“Ouvi três músicas da Clara Nunes no carro, quando ia para o trabalho, e fiquei muito impressionado”, revelou-me o amigo que sempre fizera ouvidos moucos àquele tipo de música. Por estes dias, em que sua morte completa 30 anos, recordo não somente este diálogo de quase duas décadas, mas outro bem mais recente, quando um espetáculo teatral encenado no Teatro de Arena, em Copacabana, relembrou-lhe a carreira. Na plateia havia pessoas de todas as idades – e jovens, muitos jovens, que cantavam com força as músicas que a consagraram. Dias depois, comentando a peça, ouvi do interlocutor: “Não ouvia suas músicas, não prestava atenção nela; mas, depois da peça, descobri seu valor, vou passar a ouvi-la”. 
Que força guarda essa mulher humilde que, em somente quarenta anos de vida e quase vinte de carreira, incorporou e traduziu em sons e gestos os signos de nossa nacionalidade, que é capaz de despertar o fascínio de quem nunca a vira no palco.

A presença de Clara Nunes na música popular brasileira encerra a história de uma cantora que, ao morrer precocemente, deixou órfão o Brasil – órfão de quem pudesse cantar seu sincretismo religioso, sua miscigenação, o sofrimento de seus filhos – mas que, a despeito, ainda está por receber o reconhecimento necessário, não do povo brasileiro, que chora sua ausência, mas de parcela significativa da imprensa e do establishment cultural.

Amigos de Clara dizem que ela tinha uma mágoa: não ter recebido ao longo da carreira o mesmo tratamento dedicado às grandes cantoras brasileiras. Quando a morte de Elis Regina completou vinte anos, em 2002, a efeméride teve o destaque merecido – e não poderia ser diferente, pois Elis, que cantou muito samba e foi motivo de carnaval, é uma das glórias nacionais: páginas e páginas de jornais, documentários, entrevistas, programas especiais. Ao passo que espaço dedicado ao vigésimo aniversário de morte de Clara Nunes foi muito tímido.

Outra prova do esquecimento a que foi submetida foi a ausência de publicação, até o ano passado, seja biografia, perfil ou trabalho acadêmico, sobre ela. (Atualização do autor: O livro “Clara Nunes – Guerreira da utopia”, escrito pelo jornalista Vágner Fernandes, veio suprir essa lacuna, sem esgotar totalmente o assunto)

Clara expressou as raízes do Brasil com sua maneira de vestir-se, com sua voz de cristal. Cantou jongo, ciranda, baião, coco, modinha, ponto de umbanda e, sobretudo, samba, em suas mais variadas formas. Num momento de divisão da música brasileira causada pelo Tropicalismo, em que se diagnosticava a morte do samba, Clara – tendo como companheiro de empreitada musical Martinho da Vila - devolveu ao samba a posição que o gosto popular nunca lhe tirara. Seus discos bateram recordes de vendagem; nunca uma cantora vendera tanto quanto Clara Nunes naqueles tormentosos anos 70.

O sucesso de Clara abriu espaço para outros cantores de samba: Beth Carvalho, Alcione, Roberto Ribeiro, João Nogueira – este, aliás, está diretamente ligado à carreira de Clara como compositor. Suas músicas foram gravadas por ela nos primeiros discos – e depois, quando formou a bela parceria com Paulo César Pinheiro, continuou emplacando sucessos na voz da Guerreira e no seu próprio vozeirão à Ciro Monteiro.

A referência à Elis Regina não se esgota nas diferenças das láureas póstumas a que cada uma tem direito, tampouco no que se assemelhavam: o carisma, a capacidade de despertar emoção no público. Contemporâneas, ambas começaram a carreira na mesma época, mas com trajetórias, influências e públicos diferentes. Elis, jazzística, filha degenerada da bossa-nova, representava o Brasil sofisticado e efervescente dos anos 60.

Clara, por sua vez - e não ao contrário, como se poderia inferir -, representava o Brasil profundo, o Brasil das três raças, o Brasil das senzalas, dos mucambos, do progresso e das covas rasas – mas também das casas-grandes, dos sobrados, da ordem e dos jazigos. Era, ao mesmo tempo, pré-58 e pós-68: mostrou que a tríade formadora da música brasileira – samba, bossa-nova e MPB – poderia conviver pacificamente. E quão essas classificações eram reducionistas, por desprezar nossa riqueza regional.

Canto das três raças, faixa-título do disco de 76, é o lamento do povo brasileiro em forma de samba:

Ninguém ouviu um soluçar de dor
No canto do Brasil.
Um lamento triste sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro e de lá cantou.
Negro entoou um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares, onde se refugiou.
Fora a luta dos inconfidentes
Pela quebra das correntes.
Nada adiantou.
E de guerra em paz, de paz em guerra,
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar,
Canta de dor.
E ecoa noite e dia: é ensurdecedor.
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador...
Esse canto que devia ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor


Ele despertou o Brasil que está no inconsciente coletivo do nosso povo. O Brasil das três raças. Este é o seu segredo.
 

Bruno Filippo é jornalista e sociólogo