Blog Clara Nunes: abril 2020

21 abril 2020

Discos para descobrir em casa – 'Nação', Clara Nunes, 1982

Discos para descobrir em casa – 'Nação', Clara Nunes, 1982

 Por Mauro Ferreira

Jornalista carioca que escreve sobre música desde 1987, com passagens em 'O Globo' e 'Bizz'. Faz um guia para todas as tribos




                                Capa do álbum 'Nação', de Clara Nunes — Foto: Arte de Elifas Andreato


 Há 37 anos, na madrugada de um sábado de aleluia, Clara Nunes (12 de agosto de 1942 – 2 de abril de 1983) foi morar no infinito e virou constelação após enfrentar, guerreira, 28 dias de agonia em CTI de hospital por conta de complicações decorrentes de operação de varizes.
A cantora mineira saiu de cena aos 40 anos, no auge artístico. O canto luminoso atingia picos de maturidade, dando voz a um Brasil mestiço que reluziu nas cores vivas de Nação, último álbum de Clara. Cores expostas na capa criada por Elifas Andreato para o disco.
Álbum gravado de maio a julho de 1982 sob direção de produção de Renato Correa, com produção executiva de Paulo César Pinheiro, Nação foi lançado no inicio do segundo semestre daquele ano de 1982 com repertório primoroso – composto por dez músicas, sendo oito então inéditas – que evidenciou a expansão da identidade do canto de Clara.
Em 1982, Clara Nunes já tinha conseguido o objetivo de ser percebida como uma cantora de música brasileira, ainda que o samba fosse mote e norte do repertório da artista. Nação reforçou essa identidade.
Obra-prima da discografia nacional, Nação abriu com o samba que lhe dá título. Em Nação, a música, João Bosco – compositor então gravado pela primeira vez pela mineira conterrânea – e Aldir Blanc se juntaram ao parceiro ocasional Paulo Emílio para ressignificar signos exaltados na Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939), samba-emblema de tempos idos.
Os letristas reimaginaram o Brasil sob a ótica de nação do Candomblé, Jeje, evocando o universo afro-brasileiro recorrente no repertório adotado por Clara Nunes a partir dos anos 1970. A letra do samba enfileirou símbolos mitológicos para poetizar a povoação da terra indígena que, nas mãos de colonizadores, virou a nação conhecida como Brasil.
Somente a ambiciosa faixa-título valeria o disco. Contudo, o álbum Nação apresentou outras músicas de altíssimo nível, alinhando pérolas já raras em 2020.
Na época do lançamento do disco, a gravadora EMI-Odeon promoveu três das dez faixas em programas de rádio e TV. Além da música-título Nação, o público ouviu o samba-enredo Serrinha (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) e Ijexá (Edil Pacheco).
Tributo à escola de samba Império Serrano, Serrinha foi segundo título da série de homenagens a agremiações carnavalescas cariocas, sequência idealizada pelos compositores Mauro Duarte (1930 – 1989) e Paulo César Pinheiro e iniciada com Portela na avenida (1981), sucesso do álbum anterior da cantora, Clara (1981).
Já a composição do baiano Edil Pacheco apresentou o “novo som Ijexá”, propagado em Salvador (BA), mas então pouco ouvido além das fronteiras da Bahia. Foi na cadência do ijexá, aliás, que o bamba carioca Nei Lopes compôs Afoxé pra Logun, versando sobre a dualidade de Logun, orixá “meio Oxossi, meio Oxum” – duplicidade também presente Oxumaré, regente do samba Nação.
Compositores de dois anteriores sucessos blockbusters de Clara, Conto de areia (1974) e A deusa dos orixás (1975), Romildo Bastos e Toninho Nascimento figuraram duplamente no álbum Nação como autores de Menino velho (samba lançado em disco em 1976, em obscura gravação da cantora Dila) e de Vapor de São Francisco, inspiradas músicas que reforçaram a brasilidade vivaz, sem clichês e com forte baianidade, que pautou o disco.
O repertório do álbum Nação resultou tão grandioso que até uma (grande) música inédita de Chico Buarque passou despercebida. Trata-se do dolente samba-canção Novo amor, escrito sob ótica feminina – com a maestria habitual do autor no gênero – e abordado posteriormente por Nana Caymmi (no álbum Alma serena, de 1996) e por Fabiana Cozza (em tributo a Clara Nunes lançado em 2013), sem que essas duas grandes cantoras tenham alcançado a dimensão do registro de Clara.
Fora da roda do samba, Clara Nunes deu voz em Nação ao baião Cinto cruzado, parceria de Guinga (compositor que já gravava em 1974) com Paulo César Pinheiro, autor dos versos repletos de referências ao universo sertanejo nordestino fundado (musicalmente) por Luiz Gonzaga (1912 – 1989).
Na mesma levada nordestina, a cantora também repisou nesse sertão ao reavivar Mãe África (Sivuca e Paulo César Pinheiro, 1978) – a outra regravação do repertório – para pedir a benção ao povo nagô entranhado na gênese da nação brasileira.
No arremate do álbum Nação, a cantora desfolhou o lirismo de Amor perfeito (Ivor Lancellotti e Paulo César Pinheiro) com dose precisa de sentimento no canto depurado.
Merecem ainda menções honrosas, pela excelência e adequação às músicas, os arranjos do álbum, criados por Dori Caymmi, Geraldo Vespar (atualmente com 82 anos), Nelsinho do Trombone (1925 – 1996) e Sivuca (1930 – 2016).
Em Nação, tudo – canto, repertório e arranjos – se harmonizou e reluziu sob a luz imortal de Clara Nunes, sabiá que voou para outra dimensão há 37 anos.

02 abril 2020

2 de abril- 37 anos sem Clara,mas sua obra vive eternamente!

Um ser de luz (João Nogueira - Paulo César Pinheiro - Mauro Duarte)

GRANDES BRASAS DA HISTÓRIA

Há 37 anos, no dia 2 de abril de 1983, uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos morria tragicamente. Clara Nunes, em plena forma, no auge do sucesso, nos deixava de forma dolorosa: um choque anafilático sofrido na mesa de cirurgia, quando retirava varizes das pernas, interrompeu sua trajetória iluminada. Não mais ouviríamos o canto do Sabiá, não mais sentiríamos a energia e a força da Mineira Guerreira. Uma perda irreparável.

Seu falecimento causou transtorno em todos os brasileiros. Pouco tempo depois, uma belíssima homenagem foi composta para ela. Os autores: Paulo César Pinheiro, João Nogueira e Mauro Duarte.

No livro "João Nogueira - Discobiografia", de Luiz Fernando Vianna, o autor conta como se deu a criação deste belo samba, "Um ser de luz":

"A homenagem foi no calor da hora, pouco depois da morte. Alcione leu em O Globo a expressão 'um ser de luz', cunhada pelo colunista Artut da Távola para se referir a Clara, e comentou com João. Após a missa ecumênica realizada na Portela, várias pessoas foram comer em Jacarepaguá, e Mauro Duarte mostrou um início de samba dedicado à cantora. Faltava o letrista preferido dos dois para concluir o trabalho. Mas que condições Paulo César Pinheiro, marido de Clara, teria para escrever? Ele até ficou ofendido com a sugestão. Sucumbiu, porém, diante de um argumento de João:

'Se não fizer, vão fazer uma cambada de samba ruim e você vai ter que aturar. Ninguém vai se atrever a arriscar um samba depois do teu.'

Convencido, Paulinho escreveu a letra, e a canção foi batizada de 'Um ser de luz. João ligou para Alcione:

'Faz um macarrão pra mim que eu vou te mostrar um samba.

Comeram cantando e chorando. Alcione gravou, e a música fez um enorme sucesso. João só daria a sua versão 11 anos depois."

Um ser de luz (João Nogueira - Mauro Duarte - Paulo César Pinheiro)

Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior
E o menino Deus lhe abençoou
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar

Sua voz então a se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava espantava a dor
Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia
Foi que o menino Deus chamou
E ela se foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
E a gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de vê-la, sabiá

Sabiá
Que falta faz sua alegria
Sem você, meu canto agora é só
Melancolia


Um ser de luz (João Nogueira - Mauro Duarte - Paulo César Pinheiro) - Alcione (1983) Um ser de luz (João Nogueira - Mauro Duarte - Paulo César Pinheiro) - João Nogueira (1994)