Discos para descobrir em casa – 'Nação', Clara Nunes, 1982
Por Mauro Ferreira
Jornalista carioca que escreve sobre música desde 1987, com passagens em 'O Globo' e 'Bizz'. Faz um guia para todas as tribos
Capa do álbum 'Nação', de Clara Nunes — Foto: Arte de Elifas Andreato
Há 37 anos, na madrugada de um sábado de aleluia, Clara Nunes (12 de agosto de 1942 – 2 de abril de 1983) foi morar no infinito e virou constelação após enfrentar, guerreira, 28 dias de agonia em CTI de hospital por conta de complicações decorrentes de operação de varizes.
A cantora mineira saiu de cena aos 40 anos, no auge artístico. O canto luminoso atingia picos de maturidade, dando voz a um Brasil mestiço que reluziu nas cores vivas de Nação, último álbum de Clara. Cores expostas na capa criada por Elifas Andreato para o disco.
Álbum gravado de maio a julho de 1982 sob direção de produção de Renato Correa, com produção executiva de Paulo César Pinheiro, Nação foi lançado no inicio do segundo semestre daquele ano de 1982 com repertório primoroso – composto por dez músicas, sendo oito então inéditas – que evidenciou a expansão da identidade do canto de Clara.
Em 1982, Clara Nunes já tinha conseguido o objetivo de ser percebida como uma cantora de música brasileira, ainda que o samba fosse mote e norte do repertório da artista. Nação reforçou essa identidade.
Obra-prima da discografia nacional, Nação abriu com o samba que lhe dá título. Em Nação, a música, João Bosco – compositor então gravado pela primeira vez pela mineira conterrânea – e Aldir Blanc se juntaram ao parceiro ocasional Paulo Emílio para ressignificar signos exaltados na Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939), samba-emblema de tempos idos.
Os letristas reimaginaram o Brasil sob a ótica de nação do Candomblé, Jeje, evocando o universo afro-brasileiro recorrente no repertório adotado por Clara Nunes a partir dos anos 1970. A letra do samba enfileirou símbolos mitológicos para poetizar a povoação da terra indígena que, nas mãos de colonizadores, virou a nação conhecida como Brasil.
Somente a ambiciosa faixa-título valeria o disco. Contudo, o álbum Nação apresentou outras músicas de altíssimo nível, alinhando pérolas já raras em 2020.
Na época do lançamento do disco, a gravadora EMI-Odeon promoveu três das dez faixas em programas de rádio e TV. Além da música-título Nação, o público ouviu o samba-enredo Serrinha (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) e Ijexá (Edil Pacheco).
Tributo à escola de samba Império Serrano, Serrinha foi segundo título da série de homenagens a agremiações carnavalescas cariocas, sequência idealizada pelos compositores Mauro Duarte (1930 – 1989) e Paulo César Pinheiro e iniciada com Portela na avenida (1981), sucesso do álbum anterior da cantora, Clara (1981).
Já a composição do baiano Edil Pacheco apresentou o “novo som Ijexá”, propagado em Salvador (BA), mas então pouco ouvido além das fronteiras da Bahia. Foi na cadência do ijexá, aliás, que o bamba carioca Nei Lopes compôs Afoxé pra Logun, versando sobre a dualidade de Logun, orixá “meio Oxossi, meio Oxum” – duplicidade também presente Oxumaré, regente do samba Nação.
Compositores de dois anteriores sucessos blockbusters de Clara, Conto de areia (1974) e A deusa dos orixás (1975), Romildo Bastos e Toninho Nascimento figuraram duplamente no álbum Nação como autores de Menino velho (samba lançado em disco em 1976, em obscura gravação da cantora Dila) e de Vapor de São Francisco, inspiradas músicas que reforçaram a brasilidade vivaz, sem clichês e com forte baianidade, que pautou o disco.
O repertório do álbum Nação resultou tão grandioso que até uma (grande) música inédita de Chico Buarque passou despercebida. Trata-se do dolente samba-canção Novo amor, escrito sob ótica feminina – com a maestria habitual do autor no gênero – e abordado posteriormente por Nana Caymmi (no álbum Alma serena, de 1996) e por Fabiana Cozza (em tributo a Clara Nunes lançado em 2013), sem que essas duas grandes cantoras tenham alcançado a dimensão do registro de Clara.
Fora da roda do samba, Clara Nunes deu voz em Nação ao baião Cinto cruzado, parceria de Guinga (compositor que já gravava em 1974) com Paulo César Pinheiro, autor dos versos repletos de referências ao universo sertanejo nordestino fundado (musicalmente) por Luiz Gonzaga (1912 – 1989).
Na mesma levada nordestina, a cantora também repisou nesse sertão ao reavivar Mãe África (Sivuca e Paulo César Pinheiro, 1978) – a outra regravação do repertório – para pedir a benção ao povo nagô entranhado na gênese da nação brasileira.
No arremate do álbum Nação, a cantora desfolhou o lirismo de Amor perfeito (Ivor Lancellotti e Paulo César Pinheiro) com dose precisa de sentimento no canto depurado.
Merecem ainda menções honrosas, pela excelência e adequação às músicas, os arranjos do álbum, criados por Dori Caymmi, Geraldo Vespar (atualmente com 82 anos), Nelsinho do Trombone (1925 – 1996) e Sivuca (1930 – 2016).
Em Nação, tudo – canto, repertório e arranjos – se harmonizou e reluziu sob a luz imortal de Clara Nunes, sabiá que voou para outra dimensão há 37 anos.
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