As ondas verdes do mar recebem uma oferenda, uma brisa clara, uma areia espessa. Colares, correntes, patuás e pulseiras presenciam uma espuma branca correndo entre braços abertos que se erguem graciosamente e com as mãos espalmadas, uma para cima e a outra para baixo, cantam um salve aos orixás. A espuma branca que corre entre os braços colore o vestido da sereia de traços negros desfiados em sua boca vermelha, seus cabelos frondosos como os de uma árvore, seu canto mestiço e intenso. Ela agita as mãos com leveza enquanto as linhas da capoeira passam por elas tecendo a barra rodada do vestido longo e os amuletos. O canto da sereia nos leva para o fundo do mar onde encontramos conchas, flores e estrelas. Mas não morremos lá. Porque as águas do mar da sereia são as águas salgadas do mar da Bahia que como um raio de luz se dissipam nas avenidas do Rio e nos levam até as montanhas de Minas. Se vocês querem saber quem é a sereia, ela é a tal guerreira, de voz de brisa condensada, mar em oferenda, de areia Clara.
“O mar serenou quando ela pisou
Na areia
Quem samba na beira do mar
É sereia”
Entrelaçando os braços e chamando as palmas enquanto o mar banha seu corpo e a purifica, a sereia Clara Nunes junta em seu canto a força do branco colonizador que conquistou o ar através do fogo, a ternura do negro africano que aqui chegou pelos mares da Bahia e a emoção do índio que já plantava nessas terras. Sua voz é um divino manto que cobre as jarras de barro, as matas, os milharais e as mãos de mulheres lavando roupa. Mesmo quando ela está na areia é possível ver nos olhos da sereia duas gotas d’água, seu corpo veste uma espuma branca e na doçura de sua voz há o sal da Bahia, a bandeira azul e branca da sua Portela no Rio e as cachoeiras de Minas. Com as mãos para o céu e os pés no chão ela pisa no terreiro de sua fé e lança seu olhar sempre adiante, sua presença sempre à frente, sua expressão serena que conheceu as três raças e encantou o Brasil.
“Seu brilho parece um sol derramado
Um céu prateado, um mar de estrelas
Revela a leveza de um povo sofrido
De rara beleza que vive cantando profunda grandeza”
Enquanto o coro do samba lhe monta um altar, a sereia do mar de Minas faz evocar a mata, o povo, a prata, o céu do sabiá e as forças da natureza. Clara Nunes acende velas, meche os chocalhos, leva fé para os corações que batucam samba e se banham em manjericão. Espalha alegria da Bahia a Minas, passando pela Portela. Rodando seu vestido longo e branco, Clara segue o ritmo da morena de Angola com sua voz brasileira de profissão esperança. Uma voz que traz o ouro de Minas banhado pelo mar salgado da Bahia e acompanha um sorriso espontâneo coroado por flores e conchas que lhe enfeitam os cabelos. Um brilho mestiço que se encontra nos olhos, no sorriso e no canto místico de Clara Nunes. No folclore da sereia brasileira que iluminou as minas de ouro dos corações marejados.
“Morena de Angola que leva o chocalho
Amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho
Ou o chocalho é que mexe com ela?”
Raphael Vidigal Aroeira
Raphael Vidigal escreve sobre música para a Rádio Itatiaia,
onde tem seus textos lidos aos domingos entre 11h e 13h.
3 comentários:
Raphael Vidigal ,
agradecemos pelo belo texto que enriqueceu o blog da Clara,
Seja sempre bem-vindo.
Neide e Márcio.
linda postagem! Uma homenagem mais do que merecida à nossa amada e eterna Sabiá. Chorei de emoção quando li.
Olá!
Muito obrigado pelos elogios.
Aproveito para deixar o endereço do meu blog sobre música brasileira: http://aforcaqnuncaseca.blogspot.com
Abraços,
Raphael Vidigal
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