A Sinopse Da Portela Para O Carnaval 2019
Apesar de todo o envolvimento emocional que um enredo sobre Clara Nunes impõe aos apreciadores da artista e, em especial a mim por questões óbvias, optei pelo afastamento de quaisquer possibilidades de disputa de samba-de-enredo na Portela para a escolha do hino de 2019 da escola. O motivo é simples: muitos a mim têm recorrido em busca de informações consistentes que possam respaldá-los para a construção de uma bela obra. Logo, não lançaria mão jamais da omissão intencional de minhas considerações e visão sobre o personagem por estar participando de um processo de escolha de samba. Decidi pôr de lado o furor criativo, o coração em chamas ávido por lirismo e poesia para me colocar a serviço do coletivo.
Sim, houve um ensaio inicial com uma turma aguerrida de compositores com vistas à construção de uma obra convincente. Mas a heterogeneidade de percepções acerca do personagem e de sua importância histórica no que tange à quebra de paradigmas no mercado fonográfico e à sua proposta libertária por meio da arte, me fez recuar. Creio que a minha colaboração deva se traduzir justamente na tentativa de elucidar para todos, indistintamente, quem é essa mulher que perpassa gerações com uma obra atemporal e indelével. Há compositores, atualmente, de vinte e poucos anos, com referência unicamente imagética da cantora. Clara morreu há 35 (em 1983). Portanto, o que esses jovens compreendem do personagem certamente está associado à superficialidade da representação estético-visual e sonora que carregam sobre a intérprete. Intuo que é missão dar-lhes ferramentas para mergulhar em sua vida e obra com a devida precisão. É importante compartilhar conhecimento. Seria mesquinhez usar a informação, neste momento, como artifício contra o adversário.
A vitória é a meta, a coroação maior dos festejos de 95 anos de fundação da escola. A agremiação precisa de uma obra poética, que reverencie Clara à altura de sua significância; que proponha um resgate de tradições sem concessões ante a propostas que possam levar à vulgarização de um projeto tão singular. Não cabem mais os desqualificados “sambas de demanda”, costurados por versos repletos de clichês com bordões do naipe de “é melhor me respeitar”, “o couro vai comer”, “Não sou de brincadeira”. Tornou-se lugar-comum também a recorrência a construções descontextualizadas que buscam gratuitamente, tão e somente, provar certa supremacia, como “Minha águia altaneira”, “sou de Oswaldo Cruz e Madureira”, “O meu coração é azul e branco”, “Chegou a majestade do samba”. Que a ode a Clara e à Portela se faça com maestria, pautada por metáforas, sem obviedades, com preponderância lírica. Que a representação das subjetividades seja valorizada. Que se dane o cartesianismo de uma falsa métrica detratora das emoções. Ninguém aguenta mais correr na avenida com uma bateria em 148/149bpm. Quem foi que disse que para desfilar na avenida em 75 minutos atualmente precisa “liquidificar” componente?
A Portela sempre foi pioneira. Precisa mostrar-se também na vanguarda resgatando o Carnaval que nos roubaram, provando que é celeiro de resistência e que pode fazer uma passagem arrebatadora sem render-se ao sistema. Para isso, importante implantar ações de caráter endógeno, que se iniciem no coração da escola, na sensibilização de cada segmento e componente. Torço, verdadeiramente, para que a direção da Portela repudie, de forma veemente, sambas em disputa que sejam meras colagens de trechos de canções gravadas por Clara. Outras escolas consagraram campeãs obras desta natureza para retratar personagens biografados na avenida. Torço para que a direção da Portela passe o facão em projetos com “Clara clareia na beira do mar é sereia”, “Quando eu vim de Minas trouxe ouro em pó”, “E agora você passa, eu acho graça”, “Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar!”, “É água no mar, é maré cheia”, “Portela, é a deusa do samba, o passado revela”. Eu não tenho dúvidas de que brotarão obras concorrentes partindo dessa premissa. Para discorrer sobre Clara, há que se banir o óbvio. Para retratar Clara é preciso compreender o contexto sociopolítico de sua arte libertária. Para reverenciar Clara é imprescindível ter o entendimento da natureza de sua poesia e também de sua simbologia nas relações identitárias que unem o Brasil ao continente africano.
Sempre fora um personagem afrofuturista muito antes de o conceito pautar discussões no país. Não basta ter samba para sacudir folião. É preciso obra que reacenda o interesse dos compositores pela primazia poética, é trazer de volta para a boca-de-cena o que a Portela (e outras escolas) está deixando na coxia. O enredo sobre a Clara pode traduzir essa retomada, esse reencontro com a nossa verdade, com a nossa história. Madureira a moldou em sua brasilidade, mas foi a África quem, de fato, a pariu. Como também pariu a todos nós. A hora é essa.
SINOPSE DO ENREDO
‘Na Madureira moderníssima, hei sempre de ouvir cantar uma Sabiá’
A Portela vai apresentar no carnaval de 2019 uma homenagem à cantora Clara Nunes, ressaltando a diversidade e a atualidade de sua trajetória biográfica e seu vasto e plural repertório musical, constituído de sambas-canção, sambas-enredo, partidos-altos, marchas-rancho, forrós, xotes, afoxés, repentes e canções de influência dos pontos de umbanda e do candomblé. Para isso, pretende sair do lugar-comum das narrativas sobre sua vida ou de uma colagem de títulos de sua discografia. Nossa escola exalta a importância cultural de Madureira, das festas, terreiros e do contagiante carnaval popular, enfatizando a contribuição do bairro para a formação da identidade que caracterizou Clara Nunes: a brasilidade.
O meu lugar,
tem seus mitos e seres de luz.
É bem perto de Oswaldo Cruz*
Em 1924, no primeiro carnaval da Portela, fundada em abril do ano anterior, o coreto de Madureira, criado pelo cenógrafo José Costa, reproduzia a imponente Torre Eiffel. Visitando o bairro na companhia de alguns amigos, Tarsila do Amaral não apenas eternizou aquela imagem numa tela, como também mostrou para seus pares modernistas que as festas populares do nosso subúrbio incorporavam os mais diversos elementos culturais. Sem dúvida, Madureira sempre teve um ar moderno, como a própria trajetória de Clara Nunes, que parece ter emergido de uma obra modernista, como se fosse uma tela da Tarsila: a Mineira representa a mais plural expressão da brasilidade. Morena. Mestiça.
Porque tem um sanfoneiro no canto da rua,
fazendo floreio pra gente dançar,
tem Zefa da Porcina fazendo renda
e o ronco do fole sem parar**
Clara nasceu no interior mineiro, num lugar que hoje se chama Caetanópolis. Ainda menina, trabalhou numa fábrica de tecidos para conseguir sobreviver, mas seu destino já estava traçado. Tinha como missão cantar o Brasil! Ao longo da infância, conheceu de perto as tradições culturais e as festas folclóricas interioranas, certamente recebendo influência de seu pai, Mané Serrador, mestre de canto de Folia de Reis e violeiro dos sertões das Gerais.
Sua brasilidade, como herança de sua origem, sempre valorizou a diversidade regional de nosso país. A voz de Clara fez ecoar os ritmos do povo, na saborosa confusão dos mercados populares, seja do nordeste ou de qualquer outro recanto desta nação.
Alçando voos mais ousados, Clara mudou-se para Belo Horizonte, onde participou de concursos, realizou os primeiros trabalhos artísticos e conquistou espaço nos meios de comunicação. Chegando ao Rio de Janeiro, seguiu fazendo sucesso e conheceu o misticismo que aflorava em Madureira, incorporando-o à sua identidade.
Sou a Mineira Guerreira,
filha de Ogum com Iansã***
Até então, a artista cantava principalmente boleros e sambas-canções. Após ter contato com o ancestral universo afro-brasileiro de Madureira, a mineira se transformou igual ao céu quando muda de cor ao entardecer. E nunca mais foi a mesma: visitou os terreiros, quintais e morros de Oswaldo Cruz e Madureira, vestiu-se de branco, incorporou colares, turbantes e contas, cantou sambas e pontos de macumba. Seu repertório se expandiu. A imagem de Clara evocando os Orixás, irmanada ao povo de Santo, eternizou-se na memória de seus fãs. Ela se tornou a Guerreira que não temia quebrantos, dançando feliz pelas matas e bambuzais, sambando descalça nas areias da praia, unindo a essência negra de Angola ao subúrbio carioca. E assim, sua voz rapidamente se espalhou. Seu canto correu chão, cruzou o mar, foi levado pelo ar e alcançou as estrelas. Uma força da natureza que brilhou como um raio nos palcos e terreiros, iluminando o coração dos portelenses. Nada disso foi por acaso.
Portela, sobre a tua bandeira
esse divino manto.
Tua Águia altaneira
é o Espírito Santo
no templo do samba****
Desde que foi fundada, a Portela tem uma presença significativa de elementos típicos do mundo rural, trazidos pelo povo simples do interior, sobretudo do interior de Minas Gerais, mesclados à negritude que vibrava em Madureira. Talvez tenha sido por isso que a identificação de Clara com a Portela foi imediata. Ela sempre ocupou posição de destaque nos desfiles, é madrinha da Velha Guarda e até puxou sambas-enredos na avenida. Ela e os portelenses, famosos e anônimos, sempre caminharam de mãos entrelaçadas, voando nas asas da Águia.
Um dia, inesperadamente ela partiu. Trinta e cinco anos se passaram desde então. A dor da saudade sempre reverberou no coração de todos, tornando-a uma estrela ainda mais cintilante.
Agora está na hora de a Guerreira reencontrar seu povo mestiço, para mais uma vez brilhar na avenida. Vestida com o manto azul e branco e a Águia a lhe guiar, voa minha Sabiá.
Até um dia!
Carnavalesca: Rosa Magalhães
Sinopse: Fábio Pavão e Rogério Rodrigues
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