Matéria da Revista ESSA- Vitória-ES
Cidade natal de Clara Nunes saúda a “Guerreira”
Música
José Roberto Santos Neves -Vitória-ES
A cantora faleceu há 23 anos, mas seu canto continua vivo.
Clara Nunes morreu em 2 de abril de 1983, no Rio de Janeiro, vítima de um choque anafilático durante uma cirurgia corriqueira de varizes, após 28 dias em estado de coma. O drama da cantora foi acompanhado de perto pelo numeroso séqüito de fãs, que fez vigília pela sua recuperação na porta da clínica onde estava internada. Mas o canto da “Guerreira”, como a mineira ficou conhecida, continua vivo na sua cidade natal, Caetanópolis, situada a 100 quilômetros de Belo Horizonte, na região Centro-oeste de Minas Gerais.Uma prova da perenidade desse laço afetivo foi a realização do 1º Festival Clara Nunes, promovido pela Prefeitura local entre os últimos dias 5 e 13 de agosto, como forma de homenagear a filha ilustre. A maratona, que incluiu exposição fotográfica, palestras, declamação de poesias e exibição de vídeos, teve como ápice o show “Contos de areia”, no dia 12 de agosto, data em que Clara Nunes faria 64 anos.No palco instalado na praça, as cantoras mineiras Rose Brant, Mila Conde, Elisa Paraíso e Raquel Coutinho perpassaram o rosário de sucessos de Clara Nunes, revivendo canções míticas como “Canto das três raças”, “Lama”, “Minha missão”, “Tristeza pé no chão”, “Conto de areia”, “Na linha do mar” e “Quando vim de Minas”. Sambas de Paulo César Pinheiro, Mauro Duarte, João Nogueira, Mamão, Romildo Bastos, Toninho Nascimento, Paulinho da Viola, Xangô da Mangueira e Candeia, dentre outros compositores “claristas” cujas letras e brasilidade a cantora incorporou com toda sua graça e carisma, impondo a eles sua voz cristalina e presença iluminada.OrigemCom essa homenagem, que deverá se repetir nos próximos anos, os moradores de Caetanópolis querem desfazer uma confusão histórica acerca da origem de Clara Nunes. A cantora nasceu em 12 de agosto de 1942, em Cedro Cachoeira, berço têxtil de Minas Gerais, então distrito de Paraopeba, razão pela qual sempre ter afirmado que era natural desta cidade. Com a emancipação política, em 1954, o distrito virou Caetanópolis, lugar onde Clara estudou e arranjou seu primeiro emprego, ainda adolescente, na Tecelagem Cedro Cachoeira.Quem anda pelas ruas de Caetanópolis dificilmente deixará de se emocionar com a relação de orgulho de seus moradores em relação à cantora. Na entrada da cidade, faixas anunciavam a realização do festival. Nas escolas, estudantes desenvolveram trabalhos sobre Clara Nunes, na forma de painéis, vídeos, fotos e textos. Cada grupo ficou incumbido de pesquisar uma fase da vida da cantora, desde o nascimento até a morte. Gabriel Eugênio Sales, de 10 anos, estava empolgado com o evento: “A Clara Nunes foi o grande nome da nossa cidade” — dizia o menino.O trabalho de preservação da memória da “Guerreira” engloba outras vertentes. Uma delas é a Creche Clara Nunes, coordenada pela sua irmã mais velha, Maria Gonçalves da Silva, 75, conhecida na região como “Mariquita”.
Como os pais de Clara morreram quando ela era criança, coube a Mariquita criar a irmã caçula, que, segundo ela, sempre gostou de música, tendo começado a cantar com quatro anos de idade. “Nossa família sempre foi muito musical. Nosso pai, o Mané Serrador, era violeiro e líder de uma folia de reis aqui na cidade, e a Clara cresceu com essa referência de berço” — relembra Mariquita.A criação da creche, beneficente, era um desejo da irmã famosa, que amava crianças, mas não podia ter filhos. No local está guardado um valioso acervo co
m mais de 500 itens, entre fotos, roupas, discos e objetos pessoais da cantora, que, em breve, serão disponibilizados ao público através do Instituto Clara Nunes, coordenado por Mariquita, com o apoio de professores da Universidade Federal de São João del Rey, que fazem a identificação e catalogação de todo o material.TeseA representação social da vasta obra de Clara Nunes atraiu a atenção da professora Sílvia Maria Jardim Brügger, da Universidade Federal de São João del Rey. Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, Sílvia desenvolve um estudo sobre a importância de Clara Nunes para a música popular brasileira, com ênfase na sua trajetória fonográfica, de 1966 a 1983. Para a pesquisadora, a guinada da cantora rumo à pesquisa das raízes dos ritmos brasileiros se deu no Rio de Janeiro, a partir de sua associação com o radialista Adelzon Alves, então apresentador do programa “Amigos da Madrugada”, da rádio Globo AM.Em 1970, Alves foi convidado pela gravadora Odeon para redirecionar a carreira da cantora, que havia sido erroneamente lançada como uma espécie de “Altemar Dutra de saias”, no LP “A voz adorável de Clara Nunes”, de 1966. O radialista, que teve um romance com a estrela, alega que tal projeto consistia na construção de uma imagem audiovisual de uma cantora afro-brasileira, algo que não existia no País desde a explosão de Carmen Miranda.O primeiro fruto dessa parceria foi o LP “Clara Nunes”, de 1970, impulsionado pelos sucessos “Ê baiana” (autores: Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio), “Sabiá” (de Luiz Gonzaga e Zé Dantas) e pelo samba-enredo da Império da Tijuca, “Misticismo, da África ao Brasil” (Mário Pereira, Vilmar Costa e João Galvão), viagem emblemática que narra a filiação do Brasil à África e a vinculação do País às divindades do Candomblé. Culmina com um conhecido ponto de Iemanjá: “Tem areia, ô, tem areia, tem areia no fundo do mar, tem areia”.A partir desse momento, destaca a pesquisadora, Clara Nunes se empenha cada vez mais na busca da autenticidade do povo brasileiro, seja na forma de sambas de terreiro, sambas-enredos, baião, forró, frevo, afoxé. “Não sou uma cantora de sambas. Sou uma cantora de música popular brasileira” — ela dizia sempre.Sílvia Brügger vê na obra da cantora a união de uma proposta política de valorização do canto genuíno do povo brasileiro com uma espécie de missão religiosa que ela, Clara, carregava desde o berço. “A ascensão da Clara se dá em um momento de afirmação das religiões afro-brasileiras” — garante a professora, lembrando que, no 3º Festival de MPB da TV Record, em 1967, foram inscritas 190 músicas relacionadas com a umbanda e o candomblé.A pesquisadora cita novamente Adelzon Alves, ao afirmar que “Clara Nunes se transformou na voz de um grupo de sambistas dos morros do Rio de Janeiro que não tinha representação nas rádios. Durante a ditadura militar, os setores da esquerda buscaram a música popular como forma de contestação ao regime, e a Clara se encaixava nesse contexto, por se posicionar sempre em defesa da música de raízes brasileiras, propondo inclusive um antagonismo com a música estrangeira, em especial o rock” — pontua.
Música
José Roberto Santos Neves
Sincretismo
Quanto à questão religiosa, a pesquisadora destaca que o primeiro registro em disco da ligação da cantora com a umbanda e o candomblé se deu em 1969, na música “Guerreiro de Oxalá” (Carlos Imperial), do LP “A beleza que canta” — um ano antes, portanto, do início de sua parceria com Adelzon Alves. Mariquita Gonçalves confirma que o sincretismo religioso da irmã se devia a uma busca interior que corria às margens da família: “A Clara foi batizada católica, como todos os seus seis irmãos. Mais tarde, me interessei pela linha espírita de Alan Kardec e ela me acompanhou nesses estudos. Ao mesmo tempo, passou a freqüentar terreiros de umbanda e candomblé por vontade própria. Não tinha a ver com a família” — conta.A coerência da cantora, tanto na escolha de repertório quanto na construção de uma imagem afro-brasileira — com destaque para as vestimentas baianas —, seria mantida durante sua união com o compositor Paulo César Pinheiro, com quem se casou em 1975. Pinheiro lapidou o lado intérprete de Clara, dando a ela uma ourivesaria de canções que seriam eternizadas em sua voz, como “As forças da natureza”, “Portela na avenida”, “Serrinha”, “Canto das três raças”, “Menino Deus”, “Minha missão”, dentre outras — a maioria em parceria com João Nogueira e Mauro Duarte.
REVISTA ESSA -Vitória -ES
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José Roberto Santos Neves prepara para breve seu segundo livro, uma compilação de entrevistas que fez com grandes nomes da música brasileira entre 1995 e 2005, ao mesmo tempo em que lança o livro “Maysa” pelo Brasil adentro com boa repercussão na mídia nacional.[
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José Roberto, foto Gildo Loyola
Link do site da entrevista:
http://www.taru.art.br/04j_.html